Publicado originalmente
no blog Conversas do Mano
https://conversasdomano.blogspot.com.br
A minha cidadezinha
do interior era igual a todas naqueles anos 60. A “luz”, como chamávamos
energia elétrica, saía das entranhas de um velho gerador fumacento, barulhento,
lento. Tempo em que ninguém sabia da inimizade entre óleo diesel e meio
ambiente. Tempo em que postes serviam somente para sustentar fios, abrigar
passarinhos e inutilizar pipas de garotos sem perícia.
O bicho rodava o
dia inteiro, engasgando aqui e acolá. Na boca da noite, nós, meninos
acostumados a tirar do derredor encantos para distrair a mente, ficávamos enlevados
com o tremeluzir da luz acesa. Às nove havia o rito de passagem da luz elétrica
para a luz do fogo; hora do velho motor descansar.
Era o ápice da nossa
poesia, a energia indo embora em espasmos, o silêncio da máquina desligada se
espalhando pelas ruas e becos, a luz bruxuleante das velas e das lamparinas dominando
devagarinho os ambientes das casas simples.
Os nossos medos e
lendas da escuridão das noites do sertão nos empurrando para a cama. O cheiro da
parafina e do querosene marcando nossas narinas para o resto da vida, indicando
o caminho da volta que nunca se perde. Os lençóis puxados até a cabeça, pouco
importando o calor às vezes infernal, eram muralhas de pano contra a possível
invasão de fantasmas noturnos, ardilosos, aterrorizantes, poderosíssimos
segundo contavam os mais velhos.
Fico me perguntando
por que a luz de hoje não tem mais a beleza do tremeluzir; simplesmente some,
como por encanto. Sem qualquer poesia. Atraindo iras e reclamos. Parando
fábricas e escritórios, trens, elevadores e metrôs. Queimando equipamentos. Apagando
semáforos e instalando o caos nas ruas. Atiçando malfeitores sobre a população
desprotegida.
Ela simplesmente
some. Talvez para ridicularizar postes de um sistema elétrico moderno e desconfiável.
Afinal, desde quando postes servem para algo além de sustentar fios, abrigar
passarinhos e inutilizar pipas de garotos sem perícia?
Os postes sem “luz”
de hoje em dia, e seus complexos sistemas digitais, não sabem declamar a poesia
que havia na hora de faltar energia naqueles tempos, provocar os espasmos
delicados da luz apagando, acendendo, apagando, acendendo... até os gritos de
euforia quando ela voltava. Apagaram a poesia que havia na escuridão, inventaram
o apagão. Direto. Brusco. E ainda culpam raios e trovões, raios!
Chamam os velhos
motores de obsoletos, poluentes. E mesmo cientes da inimizade visceral da
poluição com o meio ambiente, andam de mãos dadas com termelétricas. Que custam
caro. Que são agressivas. Que queimam carvão, que é madeira queimada. No melhor
estilo natureza morta. Quanta modernidade! Quanta diferença dos velhos motores
fumacentos, barulhentos, lentos da minha infância!
A minha cidadezinha
do interior continua igual a todas as outras. A “luz” vem não se sabe de onde e
nem de que jeito. Apenas vem. Sem fumaça, sem som. Velocíssima! Lá, todos sabem
da inimizade entre óleo diesel e meio ambiente, mas ninguém liga ou desliga.
Os postes ainda
sustentam fios e abrigam passarinhos. Não inutilizam mais pipas porque os
garotos não sabem o que é perícia. Raridade, um par de tênis pendurado pelo
cadarço, jogado há décadas por algum grisalho de hoje.
Não existe mais o
tremeluzir da luz acesa nem os versos dourados das velas e lamparinas para
distrair a mente no jogo com o vento e as sombras. A cidade fica acesa a noite
inteira, sem espasmos para chamar o descanso da escuridão.
Morreram os medos,
as lendas e os fantasmas noturnos. Morreram os luares e as noites do sertão.
Morreram os mais velhos ardilosos e levaram com eles suas histórias de fazer
medo. Morremos aqueles nós, sonhadores, que ficávamos apurando a vista para
contar estrelas, pouco ligando para as verrugas que cresceriam nos dedos que
apontavam, matemáticos.
Os eletrizados de
hoje vestiram o hábito da liturgia eletrônica. Acreditam que fiat lux é milagre, mas perdem a conexão
quando a luz apaga sem dedo no interruptor. Ignoram a diferença entre
canonização e carbonização. Ignoram os curtos-circuitos cada vez mais
intermitentes. Não sabem viver sem sinal e mesmo assim ignoram todos os sinais.
Não compreendem que
há séculos se declama poesia no escuro e que a vida vive tremeluzindo como as
estrelas das noites do sertão. E vez por outra ainda aparece uma lua. Que,
ainda por cima, traz São Jorge dourado. Aí, é bonito demais! Virgem Maria,
cheia de graça, assim eu vergo! Mas essa já é outra história.
(*) A Moacir
Pimentel, o Caríssimo, mestre em operar velhos motores para que não parem de
gerar energia – a luz é outra história, que segue tremeluzindo como a vida.
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