Publicado originalmente
no blog Conversas do Mano
https://conversasdomano.blogspot.com.br
Eu era muito
pequeno na minha cidadezinha quando meu pai entrou em casa e colocou um rádio
Franklin (fabricado pela Philips argentina) sobre a cristaleira da sala. Lugar
nobre da casa.
Madeira amarelada e
baquelita, cheio de faixas de ondas, valvulado. Porta do mundo. E eu me postei tantas
tardes inteiras diante dele para ouvir Beatles e Roberto Carlos. E informações
de lugares que eu imaginava muito distantes, que faziam rodar o globo da minha pequena
geografia.
Foi ali que eu
iniciei a descoberta do maior segredo, algo que moveu minha vida. Perguntas,
perguntas e mais perguntas... Como a música era feita? Como se materializava
dentro daquela caixa eletrificada? Havia pessoas em miniatura ali dentro? A
minha curiosidade infantil permanecia insatisfeita e aguçada.
A banda de música
da minha cidadezinha me deixou ainda mais deslumbrado ao dar a resposta:
pessoas tocavam instrumentos e aqueles sons se juntavam para formar a música. Eu
só queria entender como as pessoas iam parar dentro dos discos, dentro dos
rádios – ainda não sabia o que era tevê. Devoto precoce da música, me tornei
discípulo da banda, subindo e descendo as ladeiras atrás dela. Apurando o
ouvido para o amanhã.
E vieram os circos.
Quem pôde resistir ao “Hoje tem espetáculo? Tem sim, senhor!”. E pude pisar
pela primeira vez a ribalta, sentir seu magnetismo mesmo quando era dia, não
tinha espetáculo. Ali havia magia, não restava a menor dúvida. Bastava chegar a
noite e um novo mundo surgia!
Havia uma praça com
coreto na minha cidadezinha, como havia em qualquer cidadezinha como a minha.
Era ali que eu via fascinado a banda de música em momentos de gala. Era ali que
eu, pequenininho, leitor precoce, dava meus primeiros avisos ao microfone da
difusora municipal instalada no térreo do coreto – e lia os oferecimentos
musicais dos apaixonados de então.
Ronnie Von enfeitou
o país com A praça. Havia a minha
praça e eu acreditava que A praça era
da minha praça. Era 1967, ano em que deixei minha pequena cidade para morar na
capital. A primeira ruptura. Ali eu já estava completamente apaixonado pela
arte da música.
E fui embora
ouvindo A praça para morrer de
saudade da minha praça. E fui embora para perder meu primeiro amor, a minha infância,
de quem morro de saudade sem cura mesmo quando volto à minha velha praça e não
me acho mais.
A mesma praça, o mesmo banco
As mesmas flores, o mesmo jardim
Tudo é igual, mas estou triste
Porque não tenho você perto de mim
E fui embora
querendo chegar perto dos músicos onde quer que fosse. E dos artistas todos. E
da arte, porque percebi que ela seria meu caminho para a infância eterna. E
ganhei meu primeiro radinho de pilha Crown, que me ensinou a dormir ouvindo o
mundo. E depois veio o MotoRadio Dunga de duas faixas, o Philco Transglobe de
tantas outras...
E admirei pintores
e escultores. E fotógrafos. E descobri o cinema e a tevê. E me completei com imagens.
E com filmes e programas e novelas. Porque vinham de outros mundos e eu quis
ser mundano daqueles mundos. Um aluno.
E me tornei amante
das madrugadas e conheci nelas a companhia inseparável das letras impressas
sobre papel. E me apaixonei pela Bic azul, macia, parceira de todas as sinas, rabiscando
minhas dores e louvores. Enfeitando meus amores. E rodava a vitrola... zilhões
de voltas, milhões de músicas, milhares de discos. E corria a tinta azul
marcando a alta alvura do papel.
Agora eram música e
letra, dois pedaços da mesma arte de todas as artes. E entoei cantorias. E
aprendi a viver sozinho sem nunca estar sozinho. A nunca ter medo porque sempre
haverá algo por descobrir. Que reanimará, dará novo sentido. Uma espécie de
cura. Existirá!
Existirá
Em todo porto tremulará
A velha bandeira da vida
Acenderá
Todo farol iluminará
Uma ponta de esperança
E se virá
Será quando menos se esperar
Da onde ninguém imagina
Demolirá
Toda certeza vã
Não sobrará
Pedra sobre pedra
Existirá
E fui embora da
minha capital para o mundo. E entoei novas cantorias, maiores. E veio minha
grande arte, uma menina que cabia no antebraço, agora mulher. O porto onde já
tremula a (minha) velha bandeira da vida. Para um futuro que existirá num
instante, quando for o óbvio.
Eu canto, porque o instante existe
E a minha vida está completa
Não sou alegre nem sou triste
Atravesso noites e dias no vento
Atravesso noites e dias no vento
Se desmorono ou se edifico
Se permaneço ou me desfaço
Não sei se fico ou passo
Eu sei que eu canto e a canção é tudo
Tem sangue eterno a asa ritmada
E um dia eu sei que estarei mudo, mais nada
E andei aprendendo pelo
mundo. Apurei a descoberta do maior segredo que moveu minha vida. Respostas,
respostas, respostas... Aprendi como a música era feita, como se materializava
dentro das caixas eletrificadas. Como as pessoas iam parar dentro dos discos,
dos rádios, das tevês, dos arquivos digitais. A minha curiosidade infantil
estava satisfeita. E
aguçada para novas perguntas.
aguçada para novas perguntas.
Dei um jeito de
fazer discos em grandes estúdios. Dei um jeito de fazer documentários com a banda de música da
minha infância e com a festa da padroeira da minha cidadezinha. Fui para o
coreto com a banda de novo. Gravamos pelas ruas, pelas histórias das pessoas. A minha gente e eu nos divertimos contando um pedacinho
da nossa história simples por inteiro.
E descobri outras
artes, outros negócios e a maneira de juntar tudo com o amparo de palco, som,
luz, câmera, amigos e ação. Dei meu jeito de enfeitar o mundo corporativo onde
vivo com a brisa da arte com quem casei para sempre.
Já não sofro, já
não temo. Já não espero, apenas sou e vou. Nas horas vagas sigo sendo a mesma
criatura da noite que perdia o sono quando o motor da luz desligava. Que fingia
dormir quando os adultos, para anunciar a solenidade da escuridão, iam apagar
velas e lamparinas que tremeluziam pela casa. Que sentia os cheiros da parafina
e do querosene espalhados no ar. Que levantava quase flutuando quando todos dormiam,
para olhar o céu de estrelas e conversar com Deus. Que aprendeu a não ter sono
de manhã e nem em hora nenhuma do dia, porque a vida corre ligeira e é bom não
perder quase nada. Que aguarda o silêncio da noite para ouvir música, ler,
escrever. Para viver. E dormir sempre quando é madrugada, essa eterna namorada.
As criaturas da noite
Num voo calmo e pequeno
Procuram luz aonde secar
Peso de tanto sereno
Os habitantes da noite
Passam na minha varanda
São viajantes querendo chegar
Antes dos raios de sol
Eu te espero chegar
Vendo os bichos sozinhos na noite
Distração de quem quer esquecer
O seu próprio destino.
Sou viajante querendo chegar
Antes dos raios de sol
Enquanto for, quero
ter sido apenas. Mais nada. E terá bastado porque amei a arte, como amo e
amarei. Desde muito jovem não passou um dia sequer que não tenha ouvido
músicas, folheado leituras e rabiscado escritas. Os três. Como um sacerdócio.
Na tribulação ou na serenidade.
Carrego as marcas
do sereno mas não reclamo do sol que amanhece outro pedaço do dia que terei de
viver. Está no Eclesiastes: “O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez,
isso se tornará a fazer; de modo que nada há novo debaixo do sol”.
Sou viajante que
não teme as estradas, porque aprendi a respeitar as curvas incertas e as retas
com neblina. Sou viajante querendo chegar apenas no tempo certo. Aceito a sina.
Ainda é cedo pra ficar tarde demais.
(*) Dedicado a uma
das professorinhas que me ensinou o bê-á-bá, a que me deu a primeira Bic
Cristal azul de presente – que virou parceira de vida inteira, apesar da Parker
51, da Montblanc que vivem delicadamente esquecidas em algum lugar.
(**) Trechos de A Praça (Carlos Imperial) / A cura
(Lulu Santos) / Motivo (Raimundo
Fagner–Cecília Meireles) / Criaturas da Noite (Flávio Venturini-Luiz Carlos Sá).
Heraldo Palmeira é empresário, produtor cultural, aluno do mundo.
Adoro ler seus "escritos " fico voando longe nas suas palavras, relembrando momentos vividos.
ResponderExcluir