domingo, 28 de maio de 2017

ALMA NOTURNA

Heraldo Palmeira






Publicado originalmente
no blog Conversas do Mano

https://conversasdomano.blogspot.com.br


Eu era muito pequeno na minha cidadezinha quando meu pai entrou em casa e colocou um rádio Franklin (fabricado pela Philips argentina) sobre a cristaleira da sala. Lugar nobre da casa.

Madeira amarelada e baquelita, cheio de faixas de ondas, valvulado. Porta do mundo. E eu me postei tantas tardes inteiras diante dele para ouvir Beatles e Roberto Carlos. E informações de lugares que eu imaginava muito distantes, que faziam rodar o globo da minha pequena geografia.

Foi ali que eu iniciei a descoberta do maior segredo, algo que moveu minha vida. Perguntas, perguntas e mais perguntas... Como a música era feita? Como se materializava dentro daquela caixa eletrificada? Havia pessoas em miniatura ali dentro? A minha curiosidade infantil permanecia insatisfeita e aguçada.

A banda de música da minha cidadezinha me deixou ainda mais deslumbrado ao dar a resposta: pessoas tocavam instrumentos e aqueles sons se juntavam para formar a música. Eu só queria entender como as pessoas iam parar dentro dos discos, dentro dos rádios – ainda não sabia o que era tevê. Devoto precoce da música, me tornei discípulo da banda, subindo e descendo as ladeiras atrás dela. Apurando o ouvido para o amanhã.

E vieram os circos. Quem pôde resistir ao “Hoje tem espetáculo? Tem sim, senhor!”. E pude pisar pela primeira vez a ribalta, sentir seu magnetismo mesmo quando era dia, não tinha espetáculo. Ali havia magia, não restava a menor dúvida. Bastava chegar a noite e um novo mundo surgia!

Havia uma praça com coreto na minha cidadezinha, como havia em qualquer cidadezinha como a minha. Era ali que eu via fascinado a banda de música em momentos de gala. Era ali que eu, pequenininho, leitor precoce, dava meus primeiros avisos ao microfone da difusora municipal instalada no térreo do coreto – e lia os oferecimentos musicais dos apaixonados de então.

Ronnie Von enfeitou o país com A praça. Havia a minha praça e eu acreditava que A praça era da minha praça. Era 1967, ano em que deixei minha pequena cidade para morar na capital. A primeira ruptura. Ali eu já estava completamente apaixonado pela arte da música.

E fui embora ouvindo A praça para morrer de saudade da minha praça. E fui embora para perder meu primeiro amor, a minha infância, de quem morro de saudade sem cura mesmo quando volto à minha velha praça e não me acho mais.

A mesma praça, o mesmo banco
As mesmas flores, o mesmo jardim
Tudo é igual, mas estou triste
Porque não tenho você perto de mim

E fui embora querendo chegar perto dos músicos onde quer que fosse. E dos artistas todos. E da arte, porque percebi que ela seria meu caminho para a infância eterna. E ganhei meu primeiro radinho de pilha Crown, que me ensinou a dormir ouvindo o mundo. E depois veio o MotoRadio Dunga de duas faixas, o Philco Transglobe de tantas outras...

E admirei pintores e escultores. E fotógrafos. E descobri o cinema e a tevê. E me completei com imagens. E com filmes e programas e novelas. Porque vinham de outros mundos e eu quis ser mundano daqueles mundos. Um aluno.

E me tornei amante das madrugadas e conheci nelas a companhia inseparável das letras impressas sobre papel. E me apaixonei pela Bic azul, macia, parceira de todas as sinas, rabiscando minhas dores e louvores. Enfeitando meus amores. E rodava a vitrola... zilhões de voltas, milhões de músicas, milhares de discos. E corria a tinta azul marcando a alta alvura do papel.

Agora eram música e letra, dois pedaços da mesma arte de todas as artes. E entoei cantorias. E aprendi a viver sozinho sem nunca estar sozinho. A nunca ter medo porque sempre haverá algo por descobrir. Que reanimará, dará novo sentido. Uma espécie de cura. Existirá!

Existirá
Em todo porto tremulará
A velha bandeira da vida
Acenderá
Todo farol iluminará
Uma ponta de esperança
E se virá
Será quando menos se esperar
Da onde ninguém imagina
Demolirá
Toda certeza vã
Não sobrará
Pedra sobre pedra
Existirá

E fui embora da minha capital para o mundo. E entoei novas cantorias, maiores. E veio minha grande arte, uma menina que cabia no antebraço, agora mulher. O porto onde já tremula a (minha) velha bandeira da vida. Para um futuro que existirá num instante, quando for o óbvio.

Eu canto, porque o instante existe
E a minha vida está completa
Não sou alegre nem sou triste
Atravesso noites e dias no vento
Se desmorono ou se edifico
Se permaneço ou me desfaço
Não sei se fico ou passo
Eu sei que eu canto e a canção é tudo
Tem sangue eterno a asa ritmada
E um dia eu sei que estarei mudo, mais nada

E andei aprendendo pelo mundo. Apurei a descoberta do maior segredo que moveu minha vida. Respostas, respostas, respostas... Aprendi como a música era feita, como se materializava dentro das caixas eletrificadas. Como as pessoas iam parar dentro dos discos, dos rádios, das tevês, dos arquivos digitais. A minha curiosidade infantil estava satisfeita. E
aguçada para novas perguntas.

Dei um jeito de fazer discos em grandes estúdios. Dei um jeito de fazer documentários com a banda de música da minha infância e com a festa da padroeira da minha cidadezinha. Fui para o coreto com a banda de novo. Gravamos pelas ruas, pelas histórias das pessoas. A minha gente e eu nos divertimos contando um pedacinho da nossa história simples por inteiro.

E descobri outras artes, outros negócios e a maneira de juntar tudo com o amparo de palco, som, luz, câmera, amigos e ação. Dei meu jeito de enfeitar o mundo corporativo onde vivo com a brisa da arte com quem casei para sempre.

Já não sofro, já não temo. Já não espero, apenas sou e vou. Nas horas vagas sigo sendo a mesma criatura da noite que perdia o sono quando o motor da luz desligava. Que fingia dormir quando os adultos, para anunciar a solenidade da escuridão, iam apagar velas e lamparinas que tremeluziam pela casa. Que sentia os cheiros da parafina e do querosene espalhados no ar. Que levantava quase flutuando quando todos dormiam, para olhar o céu de estrelas e conversar com Deus. Que aprendeu a não ter sono de manhã e nem em hora nenhuma do dia, porque a vida corre ligeira e é bom não perder quase nada. Que aguarda o silêncio da noite para ouvir música, ler, escrever. Para viver. E dormir sempre quando é madrugada, essa eterna namorada.

As criaturas da noite
Num voo calmo e pequeno
Procuram luz aonde secar
Peso de tanto sereno
Os habitantes da noite
Passam na minha varanda
São viajantes querendo chegar
Antes dos raios de sol
Eu te espero chegar
Vendo os bichos sozinhos na noite
Distração de quem quer esquecer
O seu próprio destino.
Sou viajante querendo chegar
Antes dos raios de sol

Enquanto for, quero ter sido apenas. Mais nada. E terá bastado porque amei a arte, como amo e amarei. Desde muito jovem não passou um dia sequer que não tenha ouvido músicas, folheado leituras e rabiscado escritas. Os três. Como um sacerdócio. Na tribulação ou na serenidade.

Carrego as marcas do sereno mas não reclamo do sol que amanhece outro pedaço do dia que terei de viver. Está no Eclesiastes: “O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; de modo que nada há novo debaixo do sol”.

Sou viajante que não teme as estradas, porque aprendi a respeitar as curvas incertas e as retas com neblina. Sou viajante querendo chegar apenas no tempo certo. Aceito a sina. Ainda é cedo pra ficar tarde demais.

(*) Dedicado a uma das professorinhas que me ensinou o bê-á-bá, a que me deu a primeira Bic Cristal azul de presente – que virou parceira de vida inteira, apesar da Parker 51, da Montblanc que vivem delicadamente esquecidas em algum lugar.

(**) Trechos de A Praça (Carlos Imperial) / A cura (Lulu Santos) / Motivo (Raimundo Fagner–Cecília Meireles) / Criaturas da Noite (Flávio Venturini-Luiz Carlos Sá).


Heraldo Palmeira é empresário, produtor cultural, aluno do mundo.

Um comentário:

  1. Adoro ler seus "escritos " fico voando longe nas suas palavras, relembrando momentos vividos.

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